sexta-feira, 7 de junho de 2013

QUE ZEUS NOS AJUDE!

*Graduando em Arquitetura e Urbanismo pelo Mackenzie
Havan de Araçatuba
Em algum dia, certamente, todo araçatubense já percorreu a conhecida Avenida dos Araçás, em Araçatuba. Em frente à notável marquise que protege a plataforma da antiga estação, havia um terreno que, em muitas ocasiões, serviu como local para instalação temporária de parques e circos. Eu mesmo, em um dos anos da década de 1990, já tive a oportunidade de ir numa apresentação do Beto Carrero Itinerante. A generosa gleba entre os antigos armazéns da estação ferroviária e a linha do trem, que com o tempo ficou desocupada esperando por uma proposta interessante do mercado imobiliário, foi ocupada recentemente.

O que poderia ser um incômodo para a cidade (um terreno desocupado com tais proporções na área central) conseguiu elevar-se à categoria de problema com a chegada de um  loja de departamentos. A despeito de todas as críticas relativas aos problemas sociais e urbanos que uma loja dessa dimensão pode causar numa cidade, este texto se concentra em interpretar o edifício do ponto de vista arquitetônico. Entretanto, toda a discussão aqui levantada não se reduz em ser exclusivamente uma crítica a tal obra, mas, em toda sua limitação, pretende alcançar uma gama de projetos que seguem os mesmos atos projetuais aqui discutidos.

Qualquer semelhança desta loja com o Parthenon, ou algum outro templo grego, não é uma coincidência casual. Enquanto arquitetos e urbanistas "chiam", grande parte do público aprova e, de olho nas vendas, os construtores, incorporadores e imobiliárias estimulam este estilo fraudulento. São neocoloniais, neomediterrâneos, neomodernos, art déco, muitas vezes revestidos em tom ocre, balaustrados e com alguns poucos ornamentos. Parte da elite interpreta-os como signo de edifício nobre, contudo aqui quem faz a festa é a classe média.

Parthenon

Mas enfim, qual o problema dessas construções? Não seria somente uma questão de gosto? 

Baseado em um artigo de Fernando Serapião, publicado na revista Projeto, podemos citar pelo menos seis motivos que apontam o problema e justificam que a discussão sobre estas obras ultrapassam o juízo de valor. Estes argumentos possuem relações com a história, a tecnologia, o pós-modernismo, o poder absolutista, a cidade e a profissão. 

História
Historicamente, todo edifício clássico é horizontal, dada a própria natureza da tecnologia empregada - primeiro em madeira, depois em pedra. Além disso, prédios comerciais e residenciais são, por princípio, uma invenção moderna. Esses neoclássicos, como é o caso da Loja Havan, possuem a mesma lógica e importância de uma obra escrita em línguas mortas, incompreensível para quem escreve e para quem lê. Mas o leitor, mesmo não entendendo uma linha sequer, acha aquilo nobre, bonito. Em contraposição, esses prédios são planejados de forma racional, com tecnologia de ponta. Ou seja, são edifícios inteligentes com projetos “burros”. 

Tecnologia
Nesse caso, há um contrassenso no uso da tecnologia. Apesar de serem edifícios comerciais de ponta - sobretudo no que tange a elementos pré-moldados de fachada, eles representam um retrocesso. A contradição é utilizar, sem o menor critério, fachadas tecnologicamente de ponta cuja estampa são elementos de ordens clássicas. Trata-se de apropriação fora de época, sem propósito nem caráter, que nada acrescenta à cultura e à construção tupiniquins. Colunas gregas sobrepondo-se à peles de vidro e escadas rolante. Uma ofensa à arquitetura, tanto à estética clássica - de Vitruvio, Ledoux, Alberti ou Palladio - quanto ao desejo de industrialização do moderno - de Walter Groupius e Mies van der Rohe.

Pós-modernidade
Analisando a superficialidade dos projetos e dos discursos dos arquitetos, a possível conexão entre essas construções e a pós-modernidade revela-se um delírio. Contudo, do ponto de vista do desejo do consumidor, parece evidente o desencanto com a modernidade, não do ponto de vista funcional, mas em relação à estética. A imensa massa de edifícios modernistas produzidos na cidade - principalmente no boom de construções entre 1964 e 1978, resultado dos financiamentos do BNH -, a maior parte sem qualidade, pode ter gerado um desejo de renovação que, misturado à aspiração por status, materializou-se em frontões, colunas e capitéis. 

Autoafirmação
Alguns estudos mostram que o discurso dos que aprovam estes edifícios são, geralmente, carregados de um sentimento de nobreza e necessidade de autoafirmação. Para parecer um aristocrata, nada melhor do que frequentar um edifício com uma aparência aristocrata. É uma necessidade de posicionamento social elevado, expressada com toda pompa e circunstância.

Poder absolutista
Com Speer (arquiteto e ministro do Terceiro Reich) chega-se ao quinto ponto: no século 20, a utilização de elementos clássicos em arquitetura é associada a regimes de força. Adolf Hitler e Benito Mussolini apreciavam a cultura clássica, e os edifícios-ícones de seus regimes repetem lições do passado, seja com o auxílio do próprio Speer, na Alemanha, ou de Marcello Piacentini, na Itália. Coincidência?

Um dos prédios da Igreja Universal

A cidade
A propósito da falta de democracia, o sexto ponto é a relação (ou a falta de) desses edifícios com a cidade. Potencializada pela insegurança dos grandes centros, a ausência de gentileza desses projetos com o espaço urbano é gritante: escala opressora diante do pedestre, ausência de espaços semipúblicos ou mesmo de permeabilidade espacial, entre outros. Os empreendedores, por falta de visão, tratam o espaço privado de forma radicalmente egoísta.

Nesse ponto, entra a perversa figura do marketing imobiliário que, ignorando qualquer noção histórica, trata o projeto como mero produto. Os profissionais envolvidos na chamada consultoria imobiliária ignoram a história da arquitetura, não sabem avaliar uma boa implantação, não querem saber de aspectos ambientais, muito menos de relações urbanas. E decidem a feição que a cidade vai ganhando.

A profissão
O sexto e último ponto é fundamental e diz respeito à relação atual entre arquitetos e sociedade. Esses edifícios vão contra todos os princípios que regem a boa arquitetura: na universidade não se ensina tal cinismo; ali, os arquitetos são treinados para executar projetos que tenham compromisso com o espaço urbano. Atualmente, os arquitetos, apesar de mais envolvidos no processo do que no passado (eles fazem os projetos, trabalham na construtora, na incorporadora, na obra, na aprovação, na imobiliária etc.), perderam poder de decisão. Em última instância, há pouca conexão entre a realização imobiliária e o saber arquitetônico. Por parte da universidade, perdeu-se o contato com o mercado. E o mercado, por sua vez, não aproveita o saber da universidade. Resultado: os profissionais, ainda hoje educados para estar à frente do processo, como nos anos 1950, sentem-se impotentes ao ver a cidade ser construída a sua revelia.

Se a gente não compra livros em latim; não vai ao shopping de toga e sandálias de couro; não acha justo que pessoas sejam escravizadas; não costuma andar em carruagens, não compra quadros de autorretratos; não cruza o oceano em jangadas, tampouco teme o Leviatã e não caça para comer, não tem porque aprovar um edifício deste. Os edifícios clássicos como o Parthenon servem para ensinar e não para amordaçar. Há muita história depois do clássico e o desenvolvimento da tecnologia e da sociedade foram suficientes para que novos prédios fossem feitos de acordo com o espírito do seu tempo. Podemos até arriscar um paralelo com o que Hegel já discutia na Filosofia da História com os conceitos do Zeitgeist.  Não é um apelo à tecnocracia e ao desenvolvimento tecnológico desmedido, mas um chamado à consciência crítica sobre a arquitetura como arte e tecnologia.

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