Eu vi um menino
Por Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com
Esta noite sonhei um sonho bom e quase não quis acordar. Eu vi um menino
correndo por um campo lindo, todinho pintado de verde, com grama e flores feito
aquelas pinturas impressionistas. Corria feliz e não se importava com o que
estava ao redor. Na verdade, não havia muitas coisas na cena, além do menino e
sua felicidade.
Corria para todos os cantos, numa corrida comprida, normalmente em linha
reta, como aqueles que correm concorrendo medalhas, só que com mais sutileza,
com mais leveza, com mais alegria, porque parecida já correr com a vitória nas
mãos, com o prêmio antecipado de uma disputa que não tinha concorrentes, porque
só estava somente ele ali.
Eu via aquele menino sorrindo, feliz, e ficava pensando nos motivos de
sua felicidade, nas coisas que o faziam correr tanto. Não percebia regras por
ali. Não via guarda de trânsito que o interrompesse ou que o chamasse a
atenção. Não havia "psius", não havia "sossega, menino",
não tinha castigo, bate-boca, murmuração... Parecia que a presença do menino
ali era resultado de descuido, do esquecimento de alguém, de algum adulto
irresponsável e desleixado que, com sua irresponsabilidade e desleixo, fazia
aquela criatura feliz.
Eu vi um menino feliz e ninguém me tira a certeza de que aquilo poderia
ser real, de que aquele sonho poderia ocorrer em alguma parte da cidade, em
algum parque lindo, dos poucos parques lindos que há pelo mundo..., mas em dia
de trabalho, cheio de afazeres para adultos e, estes, com suas crianças presas
em casas, em pré-escolas e jardins da infância, já que o parque era exclusivo
daquele menino. Os adultos não têm tempo para brincar, não deixam as crianças
brincar e isso seria mesmo um absurdo: um menino, em pleno expediente de
trabalho, na claridade do dia... brincando.
Havia uma sinfonia que acompanhava este menino enquanto ele corria. Era
uma música indecifrável, com aspectos de uma balada teen e
notas de caixinha de música, de canções de ninar... Mas acho que a música era
ouvida somente por mim, o menino não estava - ao menos não demonstrava estar -
atento às demais coisas do mundo. Aliás, ao que parecia, o seu mundo se
restringia à sua felicidade.
Eu vi um menino lindo, com sua felicidade linda, num campo de flores
lindo, embalado por uma música linda... lindo, lindo, belo menino, lindo,
lindo, com sua felicidade linda, linda...
Eu vi um menino que me fez querer ser menino de novo, que me fez
resgatar minha infância e extrair dela os cheiros das frutas e flores com as
quais convivi; retomar o aroma de terra molhada logo após uma chuva rápida de
verão; me fez relembrar as comidas gostosas, preparadas pelas mãos de minha vó
Janóca, com ingredientes frescos plantados e colhidos pelo meu avô, Neuzim. Da
felicidade com que eu, meus irmãos e primos corríamos também pela chácara
Piloto, sob pés de mangas, poncãs, jabuticabas, cajus...
Eu vi um menino que deveria ser modelo para todos os meninos do mundo:
livre e correndo atrás de sua felicidade; livre e sem muitas regras que impeçam
ou que bloqueiem a marcha; livre, como todos devem ser livres.
Eu vi um menino num sonho bom que tive esta noite. Mas que pena, foi só
um sonho. Um sonho só, que poderia se tornar realidade, com seus campos, com
suas felicidades, com suas flores, com suas verdades...
Antonio Luceni é escritor, membro e
diretor da União Brasileira de Escritores - UBE.
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