segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vida-fruta

Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

A vida da gente é marcada por pequenos e grandes gestos, é feita de cores alegres e tristes, umas mais opacas, cinzentas, outras mais tropicais e vivas. Os sons também compõem a nossa história: todos temos uma trilha sonora particular que faz fundo musical para nascimentos e mortes, namoros e casamentos, encontros e desenlaces. Vida-tátil é aquela do pisar na grama verdinha para jogar bola, da areia úmida ou de minúsculos grãos soltinhos a afundar mediante cada passo na praia, do asfalto quente ou da terra molhada.

Tudo isto é válido e é de tudo isto também que somos formados, dos resíduos de tudo, como diria Drummond. Eu, particularmente, trago comigo o gosto das lembranças. Talvez porque, por vários momentos da vida de minha família – e de tantas outras milhares -, passamos por necessidades alimentares. Cada momento sorvido da abundância é precioso e tem um sabor todo especial.

Goiaba, goiabada e suco de goiaba: eram arrancadas do pé, ainda verdes ou de-vez... O bicho da goiaba nem tinha tempo de aparecer; só lá mais para o final da estação, quando já estávamos todos fartos. A vermelha é minha predileta. A branca foi coisa de curiosidade, da diferença, mas a vermelha é a mais saborosa. Também provei dos araçás – amarelo, roxo – sem nem saber quem eles eram. Goiabada cascão, feita num tacho grande, com pás feitas de madeira e moldadas com caco de vidro, duma garrafa quebrada ali no canto. Suco de goiaba é uma delícia; bem geladinho, então... hum... E o que sobrava a gente fazia “gelinho”. Coisa boa pra esse verão lascado das terras dos araçás.

Caqui: era uma fruta bastante esperada. O pé ficava todo lotado. Aquelas bolinhas verdes começavam a surgir depois de as folhas já quase não existirem no pé. Aí iam crescendo, mudando para um tom mais claro de verde, começavam a ficar meio rosa, depois laranja claro e, por último, um laranja intenso, quase florescente. Minha vó recolhia um a um, lavava-os e colocava-os numa grande bacia de plástico para gelar. Era nossa sobremesa depois do jantar, regada a histórias e mais histórias, numa roda grande no terreiro da chácara piloto. Caqui para mim tem gosto de histórias.

Mangas: no plural, assim mesmo! Havia tanta variedade que dava gosto. As “coquinho”, que eram compradas por quilo em São Paulo, nos serviam de “munição” para as “guerras” de manga. Cada grupo na sua trincheira e, aos vencedores, mais mangas. “Coração de boi”, “borbom”, “maçã”, “espada”, eram tantas que não dava para provar de todas num dia só. E imensas, quase do tamanho de nossa fome. Era uma coisa maravilhosa. Tiradas do pé, logo eram descascadas com os dentes mesmo e sorvidas no exato instante da colheita. Caldo de manga escorrendo pelos cantos da boca, cobrindo mãos, braços e barrigas... vivíamos com a barriga suja de caldo de manga!!

Abiu: fruta doce, mas que travava a boca no final.

Poncã: uma delícia, mas “dedo-duro”. Não tinha o que fizesse “calar a boca” dessa cagueta... metros de distância já éramos denunciados.

Jabuticaba: eita neguinha boa! Quantas vezes ficamos “entupidos” por causa dela.

Cana, pitanga (como gostava de pitanga!), laranja vermelha (existe, sim!), banana, coco, caju... ah, como adoro caju. Gosto da fruta, gosto do suco, gosto do doce... As castanhas eram juntadas numa lata de dezoito litros. Cheia, fazia-se uma grande fogueira e as castanhas eram lançadas dentro. Depois, só retirar as cinzas, salgar as castanhas e saboreá-las.

A vida é fruta gostosa tirada do pé. Algumas delas são mais doces, outras nem tanto assim; algumas fazem travar a boca da gente, criar nó na garganta; há as que precisam ser postas na geladeira para depois serem apreciadas, outras digeridas na hora da colheita; de algumas aproveitamos a polpa, o caroço e o bagaço, de outras só o caldo, e olhe lá!

 
Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Membro e Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

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