segunda-feira, 24 de outubro de 2011

VENDE-SE UMA CASA

Antonio Luceni

Vende-se uma casa, toda mobiliada, com cheiro de carinho dentro.
Ela saiu correndo, nem deu tempo de desligar o gás. Antes dela, uns caras ociosos, de má índole e com um odor de suor intenso – talvez mais por conta do nervosismo que das notas de feromônios exaladas por eles. Ainda assim, fediam feito cachorro solto em dia de chuva. E aquele cheiro contrastava com o da casa que abrigava calor e carinho. Não sei se estava lá dentro quando invadiram a residência. Ela não me disse e também não quis saber, porque aí já era invadir ainda mais sua privacidade que, a essa altura, estava escancarada: com os marginais que a invadiram, com os policiais cheios de perguntas e dúvidas, num tom mecânico e quase a dizer “é assim mesmo” ou “mais uma infeliz assaltada”.
Vende-se uma casa, com cheiro de carinho dentro.
Levaram tudo o que puderam. A geladeira ficou, a cama ficou, a sombra de uma ou outra mobília ficou. Mas só, porque no demais, tudo levaram. Aquele porta-retrato com uma fotografia da família na praia, levaram também. O anel de brilhante que a vovó a deu pouco antes de seguir caminho, também levaram. Umas roupas de seda, um cachecol de tricô – o primeiro que ela teve coragem de bordar e que ficou meses parado esperando ser finalizado também levaram embora. Ainda bem que levaram embora aquela blusinha listrada, meio godê... já não a suportava mais. Por que não levaram embora as contas também? Sobre o criado do quarto havia muitas duplicatas, muitos boletos bancários para pagar. Poderiam ao menos ter sido gentis e usado parte do furto para quitar suas dívidas.
Vende-se uma casa.
Não quero mais ficar aqui. Tirem-me daqui. Façam o que quiser com a casa, mas não me deixem nem um minuto sozinha com ela. Esse cheio, esse silêncio, esse lugar... Quem disse que eu quero ficar aqui. Tirem-me daqui. Tirem-me daqui e lancem a chave fora. Ou melhor, deixem-na sob o tapete, atrás de um vaso qualquer... Talvez aquele ali, o da violeta. Adoro violeta... como elas são lindas... como eu gostava delas... Como era agradável acordar bem cedinho, junto com os pássaros e, envolvida pela sinfonia matinal, jogar água nelas, umedecer os seus caules com delicadeza, evitando água em suas folhas para não apodrecerem. Também gostava de ir para o fundo de casa e continuar a rega sobre as samambaias, os coqueiros minúsculos que enchiam um vaso de cimento, formando uma touceira verde que se matizava ao longo do dia, conforme os raios de sol a invadiam.
Alguém quer essa casa?
Uma casa das minhas alegrias: das festas dos batizados das crianças, dos churrascos dos finais de semana, das ceias fartas de natal e páscoa, das risadas da maior parte da minha vida, dos meus cansaços, dos meus segredos, das minhas lágrimas em secreto... Deixo tudo isso para quem quiser esta casa. Porque agora... agora não tem mais graça. Está que é este fedor horrível, desses malditos que aqui entraram. Desses homens cruéis que não querem nem saber se a gente tem filho, se a gente tem história, se aqui já residia outro cheiro, outras vozes, outras sombras...
Não quero mais essa casa.
Essa casa que um dia foi minha. Que um dia foi minha alegria. Que um dia me fez acreditar que ficaria nela até minha velhice. Que sobre minha cama ficaria dormindo, cansada, com as forças findas, esperando uma xícara de chá e um analgésico ou coisa assim.
Fiquem com essa casa pra vocês porque dela não quero mais nem o cheiro.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro e diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

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