domingo, 28 de agosto de 2011

GARAPA


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

Estou com cinco quilos acima de meu peso ideal. Além do desconforto estético, o mais prejudicial são os problemas de saúde: colesterol, pressão alta e tudo o mais. Fico numa luta danada para perdê-los.
Ao mesmo tempo, vez ou outra, retomo algumas fotografias de infância, adolescência e até mesmo início da minha juventude e me vejo só “com orelhas”. Uma magreza terrível, mas nada de modismo: precariedade alimentar, mesmo.
Cresci ouvindo meus pais dizerem “esse aí cresceu na garapa” ou “trabalhava três dias por uma lata de leite pra essa menina beber porque não se dava com garapa”. E não entendia muito bem a que estavam se referindo. Já em Araçatuba, “garapa” mostrou-se para mim de forma mais requintada: caldo de cana gelado, com limão ou abacaxi, acompanhado de pastel e tudo o mais. “Mas essa garapa era a mesma do Ceará?”. Claro que não. A de lá, como tudo que de lá é, muito mais simples, talvez paupérrima, fosse o adjetivo mais adequado.
“Existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiências específicas, capaz de provocar um estado que pode também conduzir à morte”, afirma Josué de Castro. Milhões de seres humanos são enquadrados na segunda hipótese; segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), em seu relatório de 2006, 920 milhões de pessoas lutam contra a própria fome todos os dias e, a cada hora, 1400 crianças perdem essa batalha.
“Esse daí cresceu na garapa!”. Cresceu o quê? Tenho só 1,62m (e dois!, faço questão dos dois centímetros). Talvez por isso tantas deficiências: a vista não é muito boa, os dentes são fracos, já luto algum tempo para não perdê-los, dores de cabeça foram companhia frequente até os quinze, dezesseis anos, o cabelo, a pele cansada... Jovens com vinte e poucos anos com feições de quarenta.
“Estou com vinte e oito anos e nunca merendei, almocei e jantei num mesmo dia”.
“Se a gente fizer a janta não tem almoço amanhã. Então é melhor ficar sem comer hoje porque pelo menos a gente tem uns carocinhos pra botar amanhã na panela.
“O que adianta ter uma casa dessa grande e não ter o que comer?”
“A vida, a vida... a vida é ruim.”
As citações acima foram extraídas de um documentário chamado “Garapa”, do cineasta brasileiro José Padilha, e serviram de motivação para que eu escrevesse sobre o tema. O primeiro elemento de interesse foi o próprio título do filme. Palavra esta, como disse antes, familiar ao meu repertório de vivência. Depois, o local da filmagem: sertão do Ceará, onde eu e meus outros três irmãos – porque o caçula, Lucivan, já paulista – nascemos.
Não me lembro muito dessa vida por lá, fui retirante aos dois anos de idade. Mas de algum modo vivenciei tudo aquilo: está em meu DNA, está nas fotografias, poucas e gastas, espalhadas pelas casas de avós, tios e tias e de meus pais.
Ao assistir ao documentário parecia estar entre aquelas pessoas, buscava nelas – e às vezes encontrava – as expressões de minha mãe, pai e irmãos... de minha avó cansada, de meu avô por entre as terras secas e poeira que o maquiavam como trabalhador que era e até hoje o é.
Meus cinco quilos a mais? Acho melhor deixá-los em mim como troféu de vencedor que ousou vencer a fome, chegar onde cheguei e estar aberto pra ajudar a meus irmãos e irmãs que dia a dia enfrentam esse inimigo perverso.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor. Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

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