terça-feira, 19 de julho de 2011

Livro e purgatório


Antonio Luceni



Saio de um livro como se saísse de uma colônia de férias. Sabe aquela expressão que diz quer ler um livro é “viajar”? Para mim, muito mais que uma expressão ou metáfora, uma forma de se relacionar com o cotidiano.

Deixe-me tentar explicar. Por exemplo, recentemente reli “Capitães de Areia” para escrever um artigo científico sobre urbanismo. Pedro Bala, Sem-perna, Pirulito, Professor e Dora saíram novamente do trapiche e começaram a se relacionar comigo nas ruas e avenidas movimentadas, nos bancos e fontes da Praça da Sé, nos becos e semáforos da grande São Paulo, como também, ainda que em menor escala, na periferia de Araçatuba.

O material de trabalho do escritor, em grande parte, é feito de sentimentos e emoções humanas. Há, portanto, um quê de “purgatório” em seus escritos, com as mais diversas personas, à espera de algum leitor que as libere, que as tire de sua condição de inércia.

Somos nós, portanto, leitores, os responsáveis por abrir as portas para que as personagens das mais variadas e instigantes histórias ganhem sua liberdade, interajam conosco, encarnem novamente em novas vidas, em novas pessoas, em novos ambientes e que, por isso, vivenciem outras experiências e situações.

Aí eles ficam nos orbitando por um bom tempo. Prestamos mais atenção neles, antecipamos suas ações, conhecemos seus quereres, piadas reações... E a gente fica meio anestesiado, envolvido agora em suas vidas, em suas dinâmicas diárias, em seus fluxos de energia... (Somos nós agora personagens de seus enredos e história? Seremos nós os “intrusos” de seu mundo, de suas realidades?).

Talvez as duas coisas ao mesmo tempo, já que fantasia e realidade fazem parte das mesmas condições de vida, facetas da mesma moeda. E essa promiscuidade acaba por pautarmos em uma nova condição de ver a vida, acaba nos formatando, nos forjando, às vezes, (e, para mim, não tenho dúvida disso) num novo ser humano, mais humanizado.

E é essa a ideia de “colônia de férias” a que me referi no início deste texto. Numa colônia de férias, numa viagem de férias etc., conhecemos pessoas das mais diversas. Algumas, interessantíssimas, outras, por mais que não nos “interessem”, de uma peculiaridade intrigante. E assim vamos interagindo com todos, percebendo-os sob as mais diferentes formas (já que estamos com tempo pra isso) e nos modificando.

É isso: sempre que saio de um livro acabado atraindo seus personagens (ao menos os mais interessantes para mim) para meu cotidiano, e passam a se relacionar em minha vida por meio do padeiro da esquina, dos meninos e mendigos que vão ficando pra trás de minha janela no carro, na senhora de mãos gastas que, sentada no canto do bar, come de forma contida e discreta uma mistura indecifrável de algo qualquer.

E, por já saber o que lhes transcorre na vida, sinto-me íntimo deles, quero ajudá-los, quero indagar-lhes como está este ou aquele parente ou amigo, se já resolveu este ou aquele problema, se ainda está trabalhando neste ou naquele projeto.


Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, Diretor da União Brasileira de Escritores – UBE.

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