domingo, 26 de dezembro de 2010

SURTO DE BONDADE

Antonio Luceni


 
Minha sobrinha Letícia vivenciou de verdade pela primeira vez um Natal. Ganhou vários presentes, mas um deles foi responsável por tirar-lhe o fôlego: uma boneca, de meu irmão Lúcio.
Segurou a caixa, ainda envolta pela embalagem, rasgou-a o mais depressa e da melhor maneira que pôde (ela ainda tem um ano e meio) e a emoção indisfarçável: os olhos brilhando, o ventre murcho por um suspiro, e o sorriso largo na boca. Ficou com a boneca o dia inteiro para lá e para cá.
Esta cena me fez pensar um pouco sobre o que as coisas podem fazer conosco, o poder que aquilo que ganhamos tem sobre nossas ações, nossas atitudes.
Tem muita gente que ganha, que recebe um bem ou um dom para ser melhor para ele e para os outros. Por exemplo, um médico que dedica sua vida a tratar de gente e que, além das consultas cobradas, também se submete à compaixão em oferecer seus serviços, o dom que recebeu, para os que não podem pagá-lo.
Outro exemplo? Alguém que, mesmo vivendo em glória, em riquezas, em honrarias, deixa o seu trono e vem morar ao lado da pobreza, dos mais necessitados, dos famintos e desprezados.
E não estou falando necessariamente de riqueza material – apesar de nos dois exemplos dados isso estar presente. A riqueza aqui apresentada é metafórica. Há muita gente pobre financeiramente que é tão mesquinha quanto muito rico esnobe. (Lembro-me, por exemplo, de Dora, personagem de Fernanda Montenegro, em Central do Brasil, que era tão pobre quanto mesquinha).
É uma máxima, acho que de Maquiavel, que para se conhecer alguém basta dar-lhe poder. Pois é, devo concordar um pouco com isso. Muitos usam dos poderes que têm (políticos, religiosos, financeiros etc.) para subjugar o outro, para tirar-lhe o mínimo que tem, para ignorá-lo em sua insignificância a que a vida já o destinou.
Outros, entretanto, procuram fazer uso dos dons que receberam, que ganharam, como algo bom para todos, para uma sociedade mais justa, mais inclusiva, mais equitativa.
É comum no final de cada ano – em virtude das festas de natal e ano novo – acontecerem surtos de bondade, de fraternidade, de compaixão (e isso não é ruim de tudo: garante o pão daqueles dias para os que não têm o que comer o ano todo). Mas não resolve os problemas. A preocupação com o semelhante deve perdurar os 365 dias do ano, a prontidão e o sempre-alerta precisam ser algo constante. (Não há tanta barriga que caiba tantas doações de uma só vez, nem tão pouco são osso para que seja enterrado e procurado em outros momentos de necessidade).

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro da União Brasileira de Escritores – UBE e Diretor do Núcleo UBE Araçatuba e Região.

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