sábado, 30 de outubro de 2010

AMIGA DAS ALMAS


Antonio Luceni
aluceni@hotmail.com

E vagava triste pelo mundo... Já estava enfadada, quase enjoada mesmo, no convívio com
aquela carcaça que lhe prendia. Na infância era mais gostoso. Sim, porque vivia para lá e para cá, como filha do vento. Subia em mangueiras e goiabeiras, fazia guerra de lama quando a chuva acabava, dormia e se esquecia dos problemas da vida... Aliás, os problemas não a incomodavam. Se a barriga estivesse cheia e houvesse um canto quente para se deitar, os problemas não existiam.
Na juventude também corria para lá e para cá, mas era uma corrida estranha, sem muita lógica, com horários pré-determinados pra tudo. Na verdade, esse tipo de corrida não tinha muita graça. A barriga quase sempre estava vazia (o almoço muitas vezes era substituído por um lanche rápido ao pé da mesa do trabalho ou num canto qualquer de um barzinho) e dormir era um luxo permitido somente em feriados prolongados ou aos domingos (isso quando não tinha que concluir trabalhos em casa).
A velhice chegou. As companhias costumeiras já não eram tão constantes assim. Ao contrário, passou a se relacionar diariamente com pessoas com as quais nunca tinha convivido e, certamente, não teria tempo para conviver. A barriga agora era cheia, não de comidas – até porque lhes tinham proibido quase tudo –, mas de remédios; se fosse seguir a dieta do médico tinha que comer vento e beber água de sobremesa.
Começou a flertar com ela. Começou a se relacionar transversalmente com ela porque não tinha coragem de lhe encarar no rosto, de lhe fitar nos olhos... Como dois namorados tímidos, trocaram insinuações, desejos proibidos, murmúrios solitários... E todos à sua volta percebendo algo estranho: “Pare com essas conversas bobas, mamãe... onde já se viu falar uma coisa dessas?”.
E a velha nem aí. Fazia-se de doida – a idade já lhe permitia dessas mazelas – e esboçava um quase-sorriso no canto da boca, olhando para o nada, para o vazio... (ou a estaria flertando novamente?).
Certa noite, combinaram algo: dormiriam juntinhas, uma afagando a outra. Trocariam segredos, diriam coisas tolas, as últimas palavras. Não fariam escândalo para não chamar a atenção de ninguém e assim também não dariam vazão para que interferissem nesse plano. Quando todos acordassem pela manhã, tudo já teria acontecido. Tudo estaria consumado.
Desse jeito foi feito. Passaram a noite se divertindo, uma despedida de solteiro (é certo que seria uma despedida; de solteiro, talvez não, mas até acharmos um nome adequado para o fato seria delongado demais... quem ficar por aqui que se dê o trabalho de achar um; há coisas mais importantes para fazer agora).
Não precisou amanhecer o dia para que a viagem acontecesse. Numa fração de segundo lá estava ela: solta, livre, correndo para cá e para lá novamente. Deixou para trás a armadura pesada e enferrujada que a prendia e estava a correr de novo pelos campos, a trepar em árvores, a chupar mangas e jabuticabas, a colher flores pelo caminho. Já não tinha mais preocupações, problemas não existiam, conseguira novamente ser quem realmente era.
No final do dia (o dia não acaba nunca lá!) estava de barriga cheia e até tinha um cantinho quente caso quisesse dormir, mas não queria. Queria mesmo era continuar brincando e correndo para lá e para cá, com o vento penteando os pelos de sua face.

Antonio Luceni é mestre em Letras e escritor, membro da União Brasileira de Escritores – UBE, e diretor do Núcleo UBE Araçatuba e região.

Nenhum comentário:

Postar um comentário